7/28/2005 

No Poço

Senti o cheiro da morte logo mal pisei o chão do quintal.
Naquela noite estava um frio daqueles que greta os dedos e as lábios e tinha de ir ao velho barracão buscar lenha para dentro bem depressa. Aconcheguei o roupão ao pescoço, enfiei as meias por cima das calças e com os olhos semi-cerrados dei sete ou oito passadas com o coração aos saltos até chegar à porta do barracão que, como sempre, estava empanada na terra molhada e nas ervas com orvalho. Dei um safanão com o tronco e cintura e praticamente me estatelei no interior do chão de cimento tal era o frio que fazia lá fora.
Ao entrar procurei pelo isqueiro para iluminar a passagem por entre as latas de tinta e toda a tralha de limpeza da minha avó. Lá fora ouvia o vento a soprar e a força da chuva a bater contra os vidros da velha casa branca, quase conseguia imaginar o corpo dela deitada na cama e as janelas do quarto encharcadas pela diferença de temperatura. Que delicia!
Apressei-me a achar o isqueiro e fui até ao canto onde o meu avô guardava a lenha; nunca gostei muito que me calhasse a mim este tipo de coisas, tinha medo de ser mordido por aranhas ou de pisar alguma tábua com pregos ferrugentos, acho que cada um nasce com determinadas qualidades e ir buscar lenha ao barracão não fazia parte das minhas qualidades naturais. Aliás, desde pequeno que sempre odiei aquele barracão.
Peguei no cesto e comecei a tirar primeiro os troncos pequenos e depois passei aos maiores, como se aos poucos me estivesse a sentir mais confortável com aquela função e a habituar à ideia que me trouxe aquele lugar.
Ao fim de um bocado reparei que algumas partes dos ramos e madeira estavam encharcados, fui colocando-os para outro lado guardando apenas aqueles que estavam enxutos. Na altura nem liguei muito ao cheiro a mofo e azedo que me rodeava, pensei que fosse dos trapos velhos da avó ou das ferramentas espalhadas por todos os lados...
Saí a correr com o cesto a balançar-me nos braços, cheguei cá fora e ainda tinha as mãos molhadas. Lembrei-me de repente que não pudia entrar assim em casa, o roupão tinha ficado também todo empragnado daquele cheiro enjoativo e da cor que me irritava até à medula.
Bolas, quanto mais depressa mais devagar! Uma mulher no quarto à espera e outra no barracão por enterrar. Despi o roupão e senti na pele o frio de Novembro, já me começava a doer a cabeça de tanto tremer os maxilares com frio. Voltei ao barracão afastei toda a lenha e puxei o cadáver sem perceber bem qual a posição em que este se encontrava, o importante já não era respeitar a morte, apenas desimpedir que esta me deixasse viver. Embrulhei o corpo no roupão e arrastei-o para o luar, cá fora o vento batia-me na cara como se estivesse a punir-me por continuar a ouvir aqueles desejos interiores. Não conseguia parar de fazer aquilo. Não queria parar de fazer aquilo. As raparigas gostavam que eu continuasse a fazer aquilo! Vou continuar a ouvir as vozes, sei que estão certas....
Irritado com o peso morto do corpo e a pouca vontade de o carregar, decidi fazer um último esforço e atirar a minha prima Mafalda pelo poço do avô, este não se iria importar. Pelo menos nunca se queixava. Aquela água só era usada para a rega e tenho dúvidas que fizesse mal às plantações. Pelo contrário, acredito que é capaz de ser um fertilizante e pêras! Splash, nunca mais senti o cheiro da pequena Mafalda.
Ofegante e acelarado entrei a fumegar na casa branca, dirigi-me de imediato à casa-de-banho e lavei as mãos e a cara com água corrente. Ela tinha o costume de me chatear para lavar sempre as mãos e a cara antes de me deitar. Os dedos pareciam blocos de gelo compridos e rijos e os olhos não passavam de dois buracos negros em espiral. Olhei-me fixo no espelho com a água a escorrer na face - olá cabrão! - dei meia volta e fui ter com a outra...
Deitei-me. Ela estava fria, quieta. Porquê é que me obrigam a fazer estas coisas e depois não se mexem? Não entendo porque me continuo a deitar com a minha avó morta. Amanhã vou ter de a levar para o velho barracão antes que comece a manchar os lençois e a cheirar a mofo. Com um bocado de sorte esta vai fazer companhia à Mafalda e ao meu avô para dentro do poço.

 

Equerma

Fiquei verdadeiramente surpreendido com o espectáculo cénico e visual que assisti no Teatro D. Maria II produzido pela KARNART (as produções desta companhia andavam na minha mira há quase 2 anos), tendo como cabecilha, isto é direcção/concepção, de Luís Castro.
Equerma baseia-se no entrusamento de textos de Frederico Garcia Lorca ("Yerma") e Albert Camus ("Equívoco"), num ambiente declaradamente macabro e com uma estética bizarra, experimental e muito muito negra.
A temática da peça gira em volta das relações familiares entre marido e mulher e filho-mãe-filha. Fala-se de sexo, morte, amor, incompreensão, enfim, um melting-pot dos dois textos onde um demonstra um estilo marcadamente mais tradicional e bucólico (Garcia Orca) e outro bem mais cru, frio e seco (Camus).
Pessoalmente, foi um abrir do baú existente no sotão mental já muito empoeirado, a narração pareceu-me algo despropositada pelo uso a distorção da voz-off; não era de todo necessário para adensar o tom sério dos textos e performance dos actores, pelo contrário, acho que dificultava o entendimento e em determinados momentos roçava o rídiculo. Porém, a construção do texto em si estava interessante e bem estructurada.
Toda a bonecada, caracterização, guarda-roupa, efeitos sonoros e cruzamento de encenação e drama familiar/conjugal resultou numa noite de silêncio de cortar-à-faca. Digo-o honestamente, é de louvar a criatividade encontrada para simbolicamente se conseguir expressar sentimentos tão complexos como ausência, raiva, prisão, desentendimento morte ou loucura através de acções multi-interpretativas e tão livres de tabus. Equerma é sem dúvida um espectáculo com "eles" no sítio.
Os actores estiveram todos 5 estrelas, e fizeram-me questionar pela primeira vez no que será ter de encarnar aquelas personagens diariamente. Acredito que não deve ser fácil distanciar algumas verdades literárias do quotidiano inter-relacional de cada uma daquelas pessoas.
Anseio por mais espectáculos da KARNART num futuro muito próximo, a produção estava à altura e a encenação e performances superaram as expectativas. Recomendado!

7/23/2005 

Não-Explicável

Ontem após uma conversa sobre o mundo volátil do dinheiro e um breve sono... Tudo ficou silencioso, distante, diferente. O termo correcto é: unease. Parece que com um estalar de dedos duas pessoas se alteraram e decidiram fazer um pequeno jogo.

Quando se alimenta um sentimento de distância a distância cresce entre nós e os outros... O mesmo com o silêncio e a comunicação em geral.
Sinto-me estranhamente familiar quando me fazem isto - era comum no passado e simplesmente ignorava - mas entristece-me que aconteça juntamente com a pessoa que amo pois fico inquieto e com uma pedra na garganta que precisa ser vomitada imediatamente.
A pedra não foi vomitada e por isso estou aqui hoje a escrever, a ver se consigo vomitá-la de uma vez por todas.

A distância física não me incomoda se tudo estiver claro num plano mental. Na realidade, adoro sentir essa calma, silêncio e segurança, mas acontece com muito pouca frequência.. Ou eu estou pouco atento a esses momentos maravilhosos de sintonia não-verbal.

Interpreto o que aconteceu ontem como uma necessidade não-consciente do ego/persona se elevar, como se a determinada altura fosse impossível conter todos os sentimentos puramente narcísistas e tivesse de descarregar em algo/alguém. Na verdade, é um espéctaculo concebido e criado apenas para nós mesmos.

Admito: sou masoquista e por vezes sei que conseguia ultrapassar determinada situação mas fico à espera que a outra pessoa dê o primeiro passo pois sei que tem mais qualidades para o fazer do que eu mesmo - mentira, claro! Admito que crio essa expectativa e com a expectativa vem a frustração inerente. É uma auto-foda, e assumo as responsabilidades.

Não consigo, nem quero, criar neuroses em volta de algo que desejo de forma não-convicta preservar.
I will not let myself get into that state again...

 

On Anger

"'Righteous hatred' is in the same category as 'righteous cancer'or 'righteous tuberculosis'. All of them are absurd concepts."
- Allan Wallace

We all know that anger and aggression give rise to anger and aggression. One could say that there are three ways to get rid of anger: kill the opponent, kill yourself or kill the anger - which one makes most sense to you? "Some people feel patience is showing weakness or pessimism. But, actually, patience shows the strength and clarity of mind, which are based on wisdom and compassion. Without proper wisdom and compassion, one cannot practice patience."
- Khenpo Konchog Gyaltsen Rinpoche

"Holding on to anger is like grasping a hot coal with the intent of throwing it at someone else; you are the one who gets burned."
-The Buddha

"If subconscious anger had a parallel in Buddhist writings, it would have to do with what is called mental unhappiness or dissatisfaction. This is regarded as the source of anger and hostility. We can see subconscious anger in terms of a lack of awarness, as well as an active misconstruing of reality."
- His Holiness the Dalai Lama

 

 

Amélie, ou o Encanto de brincar comigo mesmo

Avisem-me se estiver louco:

Tenho feito um ligeiro jogo comigo mesmo: estou sentado na minha secretária e tento observar as pessoas que aparecem como se nunca as tivesse visto e tento criar um elo de ligação entre essa pessoa desconhecida e alguém que tenha conhecido no passado/presente.
Existem similiariedades gigantescas! Tenho encontrado pessoas com gestos iguais, atitudes iguais, parecem cópias fieis de outras pessoas que conheço e isto faz-me questionar sobre a veracidade do que vivemos, da realidade onde co-existimos. Parece verdadeiramente que o que vejo é fruto da minha mente e que estas "outras" pessoas são upgrades ou cópias camufladas das anteriores, como se estivesse constantemente dentro do mesmo sistema, a executar as mesmas funções mas com máscaras e artificios diferentes.
Por vezes estão a falar comigo, ou observo algumas pessoas à distância e só penso como é possível aparecerem-me estes clones sobre um disfarce recente? Só me conformo pensando que existe algo que ainda não foi ultrapassado da minha parte com essas pessoas, ainda algo falta fazer o click para depois essas pessoas deixarem de existir, serem eliminadas do sistema e passarem a haver outras novas.

Tenho uma certa resistência em relação ao conceito de re-encarnação por este mesmo motivo, custa-me a acreditar que o próximo passo seja vestir outra pele. Apenas isso? Muda o fato e a cabeça é a mesma? Foda-se, que grande desilusão... Se é para tentar chegar a um ser perfeito a todos os níveis não vejo porquê mudar apenas o fato. Aliás, é um grande fardo vivermos connosco mesmo tanto tempo, não me importava nada de haver uma lei qualquer que obrigasse as pessoas a mudarem de conduta a partir de determinada idade, é óbvio que seria impraticável por inúmeras razões éticas e morais, mas teria o seu grau de interesse sob um ponto de vista psicológico e social.

A força de um individuo reside na sua individualidade. A compreensão profunda do Outro faz com que se quebre a barreira existente entre o Eu e o Outro, mas a individualidade nunca deve ser traída.

Tenho decididamente de me mostrar mais ao mundo.

 

Conversar em Silêncio

No leito do Sol eu me deito
Mexendo no teu ventre como se quisesse algo indesejado
O som ensurdecedor das ondas cansam a cabeça
Viro-me de costas em negação e provo o sal na boca
No Verão desejo sempre ser branco como o cal
E ao dizer isto... Sentes-te triste, como se eu fosse culpado por dizer a verdade
De costas sinto o quente da tua pele próxima da minha
O vento fecha-me os olhos e diz-me para ter calma
Se não fosse quem sou, gostaria de ser o oposto do que sou agora
Isto é, gostaria de... De nada.
Não está certo negar o que se quer
É o mesmo que forçar a chuva a parar antes de nos tocar
A chuva é doce.

 

Restaurante Anti-Mijo

Não é que ontem me proibiram de dar uma mija?

Se por acaso forem jantar ali para as Portas de Stº Antão, em Lisboa, naquela rua do Coliseu, por favor evitem ir comer a um restaurante horribiliis mesmo no início da rua, que tem uns presuntos pendurados na montra (mau gosto!).
Ontem depois de ter ido ao Teatro D. Maria II ver uma excelente peça de Teatro (Equerma), do grupo Karnart, estava a caminho do carro e não aguentei em fazer uma paragem e entrar nesse dito restaurante para ir à WC. Estava à rasca!0
Entrei, eram já umas 23h, perguntei pela casa-de-banho a um reles funcionário e o gajo olha-me de perto e diz-me que o serviço no andar de cima é só para clientes, e eu respondo "Sim.. Está bem. E a casa-de-banho, onde fica?" e o gajo meio a puxar a brasa à sua sardinha: "Lá em cima é para clientes e cá em baixo estão... Ocupadas.".. Fiquei indignado com o gajo, "Ocupadas? Como assim? Está a dizer-me que todas as casas-de-banho estão ocupadas?".. O gajo olha-me novamente de cima-abaixo como se pensasse para consigo mesmo "Este cabrão é insistente."... E eu rompo o silêncio já chateado "Está a dizer-me que não posso usar as casas-de-banho deste restaurante?".. E o gajo "Sim..." meio atrapalhado.. Aprovetei o mau-jeito do cabrão e bem alto disse para toda a gente ouvir "O senhor não me deixar usar as casas-de-banho?!?! Muito obrigado pela sua BOA vontade!". Virei costas e vim-me embora.

Filho da puta do homem. Só me apeteceu mijar-lhe mesmo ali na montra dos presuntos pendurados. Só não o fiz para não corresponder aquele olhar que o gajo me fez. Não iria descer ao nível daquele pelintra e corresponder aos preconceitos que ele mesmo formolou em relação a mim.

Que eu saiba, informem-me se estou enganado, não se recusam copos de água nem mijas a ninguém!

7/08/2005 

Merda

Quando estamos na merda só vemos merda. Só conseguimos pensar em merda, chafurdar e cheirar toda a bosta que nos rodeia imaginariamente ou não. É um fedor impossível e queremos que todos vejam como é horrível estar enfiado em bosta, e como somos coitados e não-compreendidos. Adoramos sentir a merda a subir-nos até aos miolos e ficar o mais cagados possíveis, mais não seja, para mostrar o que quão valentes e sofredores pelas nossas causas somos capazes de ser.
Somos tão verdadeiros connosco próprios que conseguimos comer merda às colheres para sentirmos como é realmente o sabor a merda.
E pior ainda... Pensamos que é preciso passar pela merda e senti-la para puder falar nela com os outros.

Desculpem-me mas eu não concordo um dedo-mindinho com esta merda de atitude.

O que é merda para uns é ouro para outros, e não existe verdade absoluta e irrefutável para nenhum dos dois.
O que existe são pontos-de-vista diferentes e cada um cria o seu próprio. Se um fulano decidir ver um poço-de-merda e o outro um palácio de ouro, é lá com eles, agora cada um querer convencer o outro daquilo que sente/vê não leva a lado nenhum e é uma discussão interminável.
Tem de haver respeito e saber dar espaço ao outro lado para viver a sua fantasia de merda, ou de diamantes.
E melhor ainda: o gajo que vê ouro deve-se rir da merda do outro e apoiá-lo para ser apoiado. Se queremos ser compreendidos temos de compreender. Se queremos que aceitem a nossa merda, temos de aceitar o ouro do outro.

Logo, para mim, a conclusão desta merda de crónica é a seguinte: cada um se agarra aquilo que atribui importância. Se para uns a merda é importante, go ahead and dwell in your own shit. Se para outros o carro limpinho e asseado é importante: força, esfrega o menino e dá lustro no tablier, se para outros o gatinho ou cãozinho é importante: vá, vai lá escovar o pêlo do bicho, se para outros o importante é experimentar tudo e mais alguma coisa: vá, vai lá entupir-te de experiências até te cansares... Por mim cada um tem o direito a ser e sentir aquilo que bem entender, só não me façam engolir com a vossa merda pessoal como se fosse normal todos sermos iguais e gostarmos de comer cagalhões. NÃO SOMOS. Não somos iguais mundanamente falando. Somos diferentes e ainda bem senão era uma real merda andar tudo a tirar pêlos aos tarecos ou a saltar de parapente ou a esfregar as jantes ao carro.
Cada um tem de admitir as suas merdas, ficar fixo nelas - ou não - e não forçar o próximo a pensar que a merda é ouro.

Agora a parte filosófico e para reflectir:

"You find out that you are not what you believed you were your entire life.
And it is frightening, because this is the only way that you know how to be. You created an image of yourself, completely distorted, and you practiced and practiced for years and years until you mastered what you believe you are. And what is it that you mastered? Anger? Unhappiness? Drama? Judgment? Gossiping? And you discover something else very interesting. Every human in the entire world is a Master. And practice makes the Master. We all practice what we believe we are until we master it. And we do it to perfection. To realize this shakes your very world, and to see that none of your beliefs are true is devastating. "

O desafio é o seguinte: transformar as nossas merdas em algo fantástico para nós e convencer o próximo que a nossa preciosa merda é um pedaço de ouro carregado de valor!