11/28/2006 

Domingo

Hoje, pela primeira vez, não te quero
Hoje cansei-me de ti
Cheguei ao limite
Fartei-me
Chega!

A tua voz passou de doce a irritante
A postura já não é sequer atraente
Os olhos são vazios e amarelos
Pareces-me vulgar
Não me chegas

As tuas ideias não entram em mim
As atitudes não espelham o meu universo
A tua companhia é desprovida de razão
Ocupas espaço à minha volta

Hoje, pela primeira vez, era capaz de magoar-te
De me aproveitar do teu conhecimento para te fazer ver como és
Hoje, apetece-me retribuir tudo o que palermamamente aceitei como natural
... Hoje tenho capacidades para te deixar em cacos

Mas... Hoje... Opto por ignorar a raiva
Opto por não fazer uso do tempo em vão
Opto por não descer ao nível das discussões

Hoje, mais uma vez, opto por contrariar os padrões
Porque hoje é só um dia, e não se volta a repetir

11/24/2006 

Gálas - Negritude Corporal

A noite de 21 de Março no CCB foi deveras contagiante.
A norte-americana Diamanda Gálas deixou-me mais uma vez completamente assolado com a força arrebatadora da sua presença. Houve quem falasse em "mística" ou factor surpresa, para mim foi simplesmente derivativo e invocador.
O espectáculo que visou apresentar o trabalho "Guilty Guilty Guilty" mostrou uma artista altamente politizada e com uma veia social acutilante sentada sozinha ao piano sem proferir uma única palavra senão as da música. A sonoridade foi diversa e sempre personalizada, indo do Jazz ao Contemporâneo, passando pelos Blues e Soul. A voz da mulher é uma autêntica arma. Parece entrar nas músicas com uma intenção mas rapidamente foge para a sua pele e interpreta algo com a identidade que lhe é associada. Houve berros, houve entoações operáticas e houve até humbling and fumbling num estado quase hipnótico de delírio. Senti sem dúvida que são artistas como a Diamanda Gálas que fazem a diferença. Primeiro porque conseguem chegar ás grandes massas falando a lingua universal e depois porque o conseguem fazer com o devido mérito e respeito. O trabalho é verdadeiro e encaixa-lhe bem. Não é fabricado para as massas pondo em causa a qualidade da obra.
É certo que a grande maioria desejaria uma Diamanda a entrar em palco em pé e a agarrar 2 microfones deixando todos com os tímpanos a sangrar, mas a mim serviu-me bem estar sentado na escuridão do grande auditório e refastelado assistir a uma dose intensa de sentimento visceral e encorpado.

Long live this Black Diamond! Thank you!

11/19/2006 

As Bonecas de Bellmer

"Eu penso que as diferentes categorias de expressão - postura, movimento gesto, acção, som, palavra, imagem visual, disposição dos objectos - nascem todas do mesmo mecanismo, e que a sua origem apresenta uma estrutura similar." - H.B.

A imaginação erótica do artista alemão Hans Bellmer data do início dos anos 20, altura em que trabalhava como ilustrador e designer gráfico para companhias editoriais em Berlim, depois de ter sido forçado pelo pai a trabalhar como operário.
O tema central da sua obra, a erotização do corpo e o interesse por raparigas mecânicas, coincide com a idealização surrealista da feminilidade infantil e inocente. A mente inalterada, pura e instantânea. Este era o assunto que inspirava o estilo e revolta do movimento surrealista que procurava contornar as forças do racionalismo. Debate que anos mais tarde Bellmer iria apropriar-se ao entrar em contacto com os intelectuais parisienses associados de André Breton.
A primeira boneca (Die Puppe) surgiu em 1933. A aparição das bonecas na vida de Bellmer deu-se por três motivos: um encontro com uma prima afastada, Ursula Naguschewski, que foi viver para Berlim em 1932; assistir a uma performance de Jacques Offenbach's "Tales of Hoffmann", em que o protagonista se apaixona tragicamente pela autómata Olympia, e um descarregamento de uma caixa de brinquedos enviada pela mãe de Bellmer deixando-o em extâse.
Fascinado com a nostalgia e saudade de tempos passados Bellmer adquiriu uma necessidade de "construir uma rapariga artificial com possibilidades anatómicas. Capaz de reinventar os maiores níveis de paixão e de estimular novos desejos".
E assim foi. Bellmer pediu auxílio à prima e juntos tiraram mais de 100 fotografias de bonecas desmembradas usando um formato narrativo em que as esculpturas seriam posicionadas de forma a criarem configurações grotescamente sexuais e altamente provocatórias. As bonecas viam-se inseridas em diferentes cenários do mais surrealista imaginário. As imagens resultantes suscitavam um misto de atracção e repulsa. Uma beleza mórbida contida na decadência urbana, erotismo e abuso físico. As bonecas eram também uma arma de combate cerrado ao fascismo da época corrente. Reminiscências de uma cultura que não foi engolida de ânimo leve por Bellmer que passou a utilizar os seus brinquedos de criança para deformar em corpos mutilados de jovens inanimadas.
Esta revolta não se tratava de uma simples reprodução do genocídio nazi mas antes de uma ofensiva crítica a uma ideologia do perfeito e puro. A aparência das bonecas assemelha-se a autómatos desequilibrados, reproduções humanas de contornos roliços, e mesmo fálicos, ou simplesmente seres mecanizados sem força-motara para agir nem capacidade para lutar pela sua vida e dignidade. Em 1938, após a morte da sua mulher Margarete, Bellmer foge de vez da Alemanha e do estado fascista rumo a Paris após um estudo intensivo de Baudelaire, Lautréamont e Jarry, os grandes role-models dos surrealistas.
O mais fascinante - ou chocante - nas bonecas é a sua composição e alienação com o meio onde se inserem. Algumas têm apenas uma perna, ou quatro pernas e nenhuma cabeça, ou encontram-se penduradas ou intercruzadas entre si. Não existe fronteira no processo de construção narrativa das esculpturas sendo que se gravita entre um desprendimento e castração total do corpo e/ou matéria até uma corporalidade histérica e extremamente assimilativa entre orgãos e membros diversos. A ambivalência sexual destas peças é marcada por uma veia sádica e fetichista. Como se as bonecas funcionassem como um alter-ego de Bellmer no qual são projectadas as suas mais obscuras perversidades.
Estes corpos plásticos e fragmentados são também personificações móveis, passíveis, adaptáveis, articuláveis e incompletos. Formas que assumem estados psicosexuais de pura obsessão.
Bellmer procurava despertar a inocência da infância. O redescobrir do corpo e da sexualidade. Desde a aparição dos pêlos púbicos, às zonas avermelhadas e rosas e a sua função divertida no corpo de uma criança inconsciente. Este estado naïve das crianças a que ele chamava de "jardim maravilhoso" era um fascinante motivo de estudo e curiosidade. Era também um caso mal resolvido de atracção sexual entre o artista e a prima Ursula de 15 anos. As bonecas foram o resultado criativo dessa sublimação sexual.
Ao criar as bonecas Bellmer deu igualmente vida a uma homenagem ao corpo feminino, ainda que distorcido e manipulado não deixava de levantar questões sobre as diferenças aparentes entre o físico masculino e o feminino.
A brutalidade implícita nestas esculturas é evidente. Sugerem maus-tratos, violação ou abuso. A pergunta que perdura é: quem é responsável pela nudez e condição destas bonecas? A coexistência entre o perverso e o banal sugerem um roubo da inocência contida em brinquedos e ambientes infantis, algo que à partida se espera ver puro e imaculado. Livre de violência. Como se o confronto com estas imagens alertasse para a fácil usurpação simbólica da virgindade destes objectos e dos espaços fotografados.
Tanto ou mais interessante que as suas bonecas, Hans Bellmer desenvolve uma teoria que procura explicar a anatomia do corpo inconsciente. A constituição humana é naturalmente propicia a que determinadas zonas se encontrem escondidas ou pouco acessíveis, o artista adverte que uma vez pervertendo esta concepção racional e deformando a nossa anatomia original, seria bem passível de se trocar algumas zonas por outras que tivessem a mesma representação simbólica. A zona axilar pela pélvica, por exemplo. Esta transgressão orgânica de zonas erógenas era explicada por Bellmer pela mesma razão que pessoas amputadas sentem um registo e sensação de membros desaparecidos. As imagens dos membros em falta são suprimidas fisicamente, mas a nível psíquico continuam a exercer efeitos activos e psicossomáticos. A comprovação da inseparabilidade entre corpo e mente.
Desiludido com o mundo, num lugar onde a transgressão e o imaginário têm lugar, Bellmer teve a capacidade de catapultar as suas criações para além de um universo fantasioso de um mestre Gepeto construindo o seu Pinóquio. As bonecas expõem abertamente um desejo libidinoso contido num estado híbrido que deambula entre o real e o virtual.
O que torna ameaçadoras estas criações não é a fragmentação do corpo mas antes o que está escondido no escuro da psique de Bellmer. A realização das suas paixões suprimidas ganham forma e deixam de ser um mapeamento cognitivo passando a ser algo factualmente real - embora inerte - do desejo violento de um homem em trazer a este mundo algo interior e expor esse desejo abertamente. Trata-se dum confronto e identificação do desejo. Um estudo surreal de uma profundidade negra mas patente em cada um de nós. É perturbador, mas ao mesmo tempo familiar. Olhar sobre as bonecas e admitir a sua beleza artística equivale a uma transcendência de bem e de mal, é uma anulação da repressão sexual.
Afinal, não serão estas bonecas bem menos ofensivas que qualquer filme porno? Onde está então a violência? Na arte, ou implícita no observador?
Este estilo que procura fugir à lógica forçando a livre associação não passa de um apêndice de configuração doente e duvidosa do mundo onde vivemos. De uma erotização degenerada. Não há sangue, tripas ou gore, é apenas trágico e dramático. Demasiado real? Objectos inanimados com capacidades ultra-realistas. Mas Bellmer explica-se bem, "se a origem do meu trabalho é um escândalo, é porque, para mim, o mundo é um escândalo."