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5/19/2005 

A Poltrona

Fui ao barbeiro. Dei comigo sentado naquelas poltronas gigantescas que mais parecem um trono de rei novo-rico. Os estofos gastos mas altos empurravam-me para cima ficando com os pés no ar, fazendo-me sentir uma criança submissa em casa de um familiar distante. Apalpo os apoios para os braços que são de um metal frio e pesadão, com um design que hoje em dia voltou a ser bem cool para ter no meio de uma sala perdida nos meandros de qualquer metrópole cosmopolita europeia.
Às tantas, no meio daquele cheiro a pó-de-talco e after-shave, questiono-me: o que é que torna estes locais tão entusiasmantes e ao mesmo tempo tenebrosos? Sinto um nervoso-miudinho sempre que aqui entro. Serão as revistas e jornais com acontecimentos de meses longuínquos que são largados sobre uma bancada de mármore suja pelo tira-e-põe dos clientes que esperam, ou talvez os cabelos que se encontram num canto da sala, por detrás de uma vassoura, juntos como se derivassem de uma única cabeça? Este lugar tem algo de extremamente macabro e no entanto não consigo apontar uma razão fundamentada que justifique o que acabei de descrever.
Sentado vou observando a parede à minha frente com espelhos do tecto até à cintura e os calendários de mulheres semi-nuas pendurados ao lado dos pentes para venda com etiquetas amarelas. Aqueles pentes pequeninos que alguns homens usam dentro do bolso do casaco para passar na poupa nos dias especialmente ventosos.
Um velho de ar dócil aproxima-se na lateral e olha de esgueira com a tesoura erguida numa mão enquanto inclina o corpo para limpar a outra à bata curta e branca - "então, como vai ser?" - baixo as sobrancelhas e respondo tristemente, "máquina um por favor."
O som da máquina a ligar-se arrepia-me a nuca e os braços, faz muito tempo que não corto o cabelo. Aliás, nunca gostei de aqui entrar. Desde criança que me sinto inquieto ao entrar num barbeiro, parece que ponho à prova a minha resistência à paciência, ou pior que isso, sinto que deposito o destino e uma orelha nas mãos de um velho que sofre de arritemia crónica e de um cheiro podre da boca.
Observo a mão do velho como quem analisa uma sirurgia de alta precisão. Treme por todos os lados. “Estou tramado!”. O sr. Zé até é boa pessoa mas intimida-me profundamente. O corpo esgueiro e fininho parece não conseguir suportar o peso das máquinas que utiliza e por isso fico sismado que ao menor movimento corporal me irá cortar uma orelha. É demasiado baixo para se movimentar de um lado para o outro da grande poltrona, é assustador e não oferece credibilidade nenhuma. Permaneço hirto e firme. Respiro fundo e aproveito a desculpa dos cabelos me cairem na cara para fechar os olhos e engolir em seco. “Pudia ter feito isto em casa, nunca mais aprendo. Já não tenho idade para estas coisas.”
O sr. Zé é um tagarela nato, vai falando com os clientes habitué e com os novos como se fosse dono daquela rua ou mesmo do bairro inteiro. Na realidade, ele conhece grande parte das famílias que ali habitam, está habituado a observar quem passa em frente à loja e o costume de ir ao barbeiro é já uma tradição que vai passando de pai para filho e muitas vezes é até frequente encontrar gerações opostas dentro do mesmo salão criando confrontos de estilos, ou meros desabafos futebolísticos que se prelongam por horas a fio.
Naquela zona toda a gente conhece o Zé, já nem se usa dizer que se vai ao barbeiro, as pessoas cruzam-se na rua e trocam garlhadetes do género “Epá, um corte de cabelo novo, hein?” e o outro responde de peito cheio, “Estava a precisar de dar uma carecada, fui ali ao Zé.” E alegremente vão fazendo publicidade a um espaço que oferece o mesmo serviço, com as mesmas condições - e os mesmos jornais - ano após ano e que por alguma razão absurda continua a ser o predilecto da população local.
Mas devo confessar, o que me irrita profundamente neste barbeiro não são as instalações precárias ou mesmo o corpo bailarino do sr. Zé, é sim o modo como dá duas tesouradas e faz uma pausa para gesticular grandiosamente enquanto faz valer o seu ponto de vista curto e manhoso. De seguida, volta a ajustar a tesoura nos dedos e enquanto ouve a resposta vinda de um cliente qualquer a 3 passos de distância, esboça um sorriso de sapo como se pensasse consigo mesmo “este gajo não faz a mais pequena ideia do que está para ali a dizer”.
Sempre achei os gestos do sr. Zé demasiado exagerados para o seu tamanho. Lembro-me que quando era puto e lá ia tinha medo que uma tesoura saísse disparada da mão ou que num acto de descuido fosse bater na cabeça do infeliz que estava sentado na poltrona. E agora era eu que ali estava sentado. Na famosa poltrona de estofos redondos. A olhar para a barriga e a imaginar os cabelos cairem sobre a bata que se encontrava apertada no meu pescoço como uma trela. Tinha uma sensação eminente de culpado, sentia-me um condenado que sabe que está a ser julgado por algo socialmente incorrecto mas que na sua cabeça faz sentido e é perfeitamente aceitável.
Uma parte de mim envelhece quando corto o cabelo. Faz-me sentir triste pois transmite uma imagem errada de frescura que não habita no meu corpo. É como uma traição assumida, uma facada necessário que dou nas costas.
Olho pela vitrine ao meu lado esquerdo e vejo as pessoas passarem lá fora com destinos fixos: vão às compras, buscar os filhos à escola, ao banco, enfim, o sr. Zé não tem culpa nenhuma da minha tristeza e provavelmente ainda hoje continua a cortar cabelos a miúdos e graúdos, com o seu enorme papo na garganta, bafo nauseabundo e aos pulinhos de um lado da poltrona para o outro.
No barbeiro aprendi a esperar. Aprendi a estar comigo próprio e a pensar de forma séria na vida. Ficava sentado naquelas cadeiras dispostas uma ao lado da outra de frente para os espelhos e ora sorria com as histórias simplistas dos velhos, ora olhava para dentro através da janela para a rua.
Sentia-me preso naquele espaço. Como se não pudesse fugir e fosse obrigado a passar por aquela situação para aprender algo maior.
De repente acordei. Olhei para as minhas mãos por debaixo da bata que tinha presa ao pescoço e vi-me reflectido no espelho. Levantei-me calmamente, olhei o sr. Zé e fui-me embora do barbeiro.
Hoje não cortei o cabelo, mas continuo arrepiado.