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5/17/2005 

Passeio

Abri os olhos.
Estava no chão, e a única coisa que conseguia ver no breu da noite era o vulto dos meus braços. Tinha os ossos cansados de estar naquela posição em que os tornezelos ficam em pressão com o soalho.
Lá fora estava uma noite clara, daquelas em que o céu ilumina mais do que qualquer luz artificial. Sentia-me fatigado e em erupção interior. Tinha de fazer algo; mais não seja por mim mesmo. Precisava de me assumir, estava cansado daquela situação repetitiva e daquele estilo de vida com o qual não me identificava.
Levantei-me cuidadosamente do chão na tentativa de não produzir um único som, sabia que ao dar o primeiro passo iria ouvir o chão estalar ou as mobílias ranger, odiava aqueles sons melindrosos a meio da noite e por isso avançei cuidadosamente parecendo um malabarista num truque de trapézio sem fios. Não queria que ninguém me ouvisse.
Cheguei à ponta do quarto e meti a mão na maçaneta. Agarrei-a com a mão inteira de forma a controlar por completo o mecanismo de abertura na ilusão de conseguir guardar o som produzido pela fechadura através do abafamento com a pele da palma da mão.
De punho forte inclinei a maçaneta e abri ligeiramente a porta, espreitei e, vi que o caminho estava livre. Permaneci em silêncio durante mais uns minutos por via das dúvidas não estivesse a ser ouvido. Enchi o peito e meti o pé esquerdo fora e depois o direito. Quando dei por mim tinha passado o hall e a cozinha e encontrava-me agora junto às janelas que iriam dar acesso à noite fria e libertadora.
Pensei mais uma vez: "é isto que eu quero? Estarei a tomar a decisão correcta?". Esbufetei a minha consciência e de um só movimento abri a janela e esgueirei-me lá para fora, os pêlos dos braços e pernas levantaram-se, pensei na expressão idiota "pele-de-galinha" - quem se lembrou de comparar a pele nojenta das galinhas com a nossa? Deve ter sido algum carniceiro da época medieval.
Lá fora estava um frio cortante. Agachei-me e dei passos largos em direcção ao rio sempre encostado às paredes como se assim desse menos nas vistas devido às sombras dos prédios. Ao chegar à relva acelarei passo e acabei por me esconder por detrás de um banco de jardim. Cheirava a mijo de cão e dei comigo a pensar que não sabia o que estava a fazer nem estava minimamente preocupado com o assunto. O vento varreu-me repetidamente como se estivesse a avisar para o que me tinha metido. Mais uma vez ignorei a minha cabeça e corri para ao pé das árvores, talvez lá estivesse mais abrigado. Sentei-me e enrosquei-me sobre mim próprio, não estava longe mas estava sozinho e com a dignidade intocada.
- O que vai ser de mim agora?
- "Estás fodido, rapaz. Vais ter de voltar."
- Nem morto, antes gelar aqui na relva.
- "Não sabes o que dizes palerma! É melhor calares-te que estou com fome e fico descontrolado!"
Olhei para o lado e respondi-lhe:
- És um velho mal-cheiroso, afasta-te de mim que esta árvore é minha.

O sacana-asqueroso não gostou de ouvir verdades e saltou-me para cima de boca aberta aos grunhidos, empurrei-o mas o cabrão estava possesso como se o comentário ao cheiro lhe tivesse atingido mesmo na ferida. Ainda esteve ali a espezinhar uns valentes minutos enquanto se babava no meu braço e tentava esmurrar-me, cansei-me daquela situação e fugi.

A cidade à noite não tem nada a ver com o que aparenta de dia. Parece a contra-face das compras e das idas ao cinenema transformadas em crime, degredo e bêbados mal-cheirosos. Fiquei fulo com o velho por me ter tocado, odeio aquele tipo de atitudes descontroladas e puramente parvas.
Continuei a andar sem destino e a pensar nas peripécias que iriam cruzar caminho, estava entusiasmado por ali estar e nem sabia onde estava.
Do outro lado da rua vi uma janela semi-aberta com iluminação interior, decidi entrar na esperança de me abrigar do frio, começava a ficar com os dedos gretados e os lábios secos, era melhor cuidar de mim ou ninguém o iria fazer.
Entrei cuidadosamente pela janela sem que ninguém desse pela minha presença, encontrava-me num espaço húmido e com um cheiro a comida. Deixei que os sentidos me conduzissem a um lugar confortável. Apalpei as paredes e senti o cal caír-me nos pés de tão podre. Sentia a presença de alguém mas não fazia ideia de quem, ou o estado da mesma.
Ao fundo do que parecia ser um corredor dei com um quarto, o coração acelarou vertiginosamente e senti-me um autêntico ladrão a assaltar a casa de alguém familiar. Já ali estava por isso aproveitei a coragem e passados alguns minutos agarrados à maçaneta abri a porta lentamente sem que a minha presença fosse sentida do lado de dentro.
Caminhei até ao fundo do quarto e sentei-me sobre os tornezelos como tinha hábito de fazer, doíam-me os ossos, estava cansado comigo mesmo.
Fechei os olhos.