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1/16/2007 

Argento - Sonhos Macabros

Em meados de 2002 "Suspiria" resgatou o meu interesse por filmes de terror. O responsável é Dario Argento, mestre italiano que filma prodigiosamente um cruzamento de thriller/horror/mistério/policial conhecido como giallo. Recordo-me claramente daquele dia: estava em casa - provavelmente de férias, com pouco para fazer. Deitei-me no sofá e sem grandes expectativas baixei os estores e coloquei a rodela importada no leitor de DVD. Os 98 minutos seguintes foram de delírio total e contagiante. O meu gosto por cinema foi alterado. Estava no verão e fiquei gelado. Lembro-me também que pela primeira vez um filme fez-me levantar e ir beber água, tal era a ansiedade provocada. Senti-me desconfortável, abismado, surpreendido com a vivacidade adjacente à estética de macabro. Um misto de estranheza e fascínio.
"Suspiria" não só me fez descobrir Dario Argento, como me tem mantido interessado pelo género giallo (título que provém das capas/cartazes amarelos característicos destas obras) e pelos diferentes realizadores de baixo orçamento oriundos de Itália, caso de Mario Bava, Lucio Fulci, e outros tantos dementes cinéfilos com idade para já terem juízo e deixarem de brincar a Hitchcocks europeus com um toque de sobrenatural.
Argento nasceu em Roma no ano de 1940, filho do produtor de cinema italiano Salvatore Argento e da modelo Brasileira Elda Luxardo. O seu primeiro êxito deu-se enquanto argumentista juntamente com Bernardo Bertolluci para o filme de Sergio Leone "Once Upon a Time in the West" (1969). Aos 30 anos realizou e escreveu o seu primeiro filme "The Bird with the Crystal Plumage", primeiro da trilogia dos animais, ao qual se seguiram "The Cat o' Nine Tails" (1971) e "Four Flies on Grey Velvet" (1972). Durante este período os filmes de Argento faziam-se acompanhar de uma aura de thriller barroco onde o suspense é o motivo central da obra. A narrativa gira em torno de uma investigação ou mistério por resolver; um puzzle psicológico carregado de mortes elaboradas e mise-en-scène triunfante. Em 1975 estreia "Deep Red" sendo muito bem recebido pela crítica o que cimenta o mestre italiano como pioneiro no género giallo.
Finalmente, em 1977 surge "Suspiria", a grande obra inspirada em contos clássicos dos Grimm, Andersen e Poe, escrito em colaboração com a sua companheira Daria Nicolodi, junção esta também fértil em talento com o nascimento da filha Asia Argento (protagonista em "Marie-Antoinette", "xXx", "Last Days", "New Rose Hotel", etc.)
"Suspiria" marca o início de uma nova fase na carreira de Argento. Não só a nível estilístico como de abordagem temática, buscando influências a territórios do sobrenatural resultando numa imagética mais rica e experimental.
Em "Suspiria" nada se conta como num filme dito comercial ou hollywoodesco. Não existe herói ou anti-herói, e não se trata propriamente de uma demanda do bem contra o mal ou de existir um objectivo anunciado. O ambiente é puramente onírico, e como tal, a sensação subjacente à experiência fílmica é a de estarmos realmente a pairar num limbo absurdo onde os décors parecem pertencer a uma peça de teatro com um design de iluminação exagerado nas cores primárias - que se mostram fortes e esplendorosas - por onde a personagem principal Susie Benson (interpretada por Jessica Harper) divaga em busca de respostas numa mansão gótica supostamente mascarada como academia de ballet. Os tons vermelho, azul e verde são intensos e aumentam drasticamente a tensão presente nos diferentes cenários por onde as personagens deambulam. A banda sonora galopante, interpretada pelo colectivo de rock-sinfónico Goblin, mantém o frenesim e adrenalina bem elevados logo desde a primeira cena onde se assiste a um assassinato sem igual. O início prepara cedo o espectador para uma dose valente de surpresas e simbiose perfeita entre som e estética.
A história de "Suspiria" é evidentemente estruturada como se de um sonho se tratasse, prima pela não-linearidade deixando muitas pontas ficarem sem nó e o simbolismo abunda onde a lógica mais parece faltar. De calcular que esta desorientação racional seja um motivo de incompreensão do filme, ou por outro uma confirmação de delírio visual sem igual o que o torna o filme precisamente cativante.
Outro ponto forte é a concepção do design de interiores que se foca numa arquitectura povoada por ângulos pontiagudos, formas triangulares acutilantes, espelhos, cortinas e bastantes colunas adornadas. A cor é mais uma vez um elemento chave que transforma o espaço em um teatro vivo surrealista, fruto da mente de um vanguardista histérico.
À superfície, as personagens de "Suspiria" são pouco densas e os diálogos quase inacreditáveis. Mais estranho ainda quando se trata de um filme rodado em várias línguas e depois dobrado com algumas falhas. O espectador é imediatamente apanhado desprevenido pela a mistura do áudio e aparente falha de produção, mas afinal, estamos num filme de Dario Argento, isto não se trata de uma recriação da realidade, mas antes uma construção em formato fantasioso, terra onde os limites racionais não imperam.O facto de estarmos perante uma produção invulgar e quase "familiar" de sub-cinema faz com que se eleve o visionamento a um nível de espanto e entusiasmo maior. Assiste-se a truques e recursos cinematográficos próprios (as mãos do assassino são sempre as mãos de Dario), com uma mestria de realização irrepreensível e característica de cinema de autor. Nos momentos intercalares a uma morte vive-se uma claustrofobia e sensação pendente de mistério extasiante.
Após "Suspiria" Dario continua a realizar inúmeros filmes, entre eles: "Inferno" (1980), "Tenebrae" (1982), "Phenomena" (1985) com Jennifer Connelly, a lista estende-se até à actualidade. Porém, é "Suspiria" que se destaca pela ousada lufada de ar fresco e arriscada criatividade que marcou o género do horror sem deixar precedentes. Aclamado por nomes como Alice Cooper, Clive Barker, John Carpenter ou Quentin Tarantino, o mestre italiano deixa qualquer um a roer as unhas de nervosismo, para ele "o cinema é a dimensão dos sonhos".