B de Beleza (Ensaio)

Talvez seja melhor começar pela definição de belo que se encontra num vulgar dicionário da Porta Editora, eis o que diz: "(...) 1. que tem forma agradável, formoso, lindo, bonito; 2. que provoca uma emoção estética; 3. gentil, aprazível; 4. distinto; 5. feliz; 6 próspero; 7. nobre; 8. generoso; 9. harmónico; 10. perfeito; perfeição (...)".
De forma vaga e sucinta podemos dizer que o conceito de beleza é bem mais vasto que a conexão humana e física que com ele estabelecemos. O belo estende-se a objectos inanimados e formas, símbolos ou representações meramente estéticas que extravasam os limites do auto-centrismo da nossa espécie. Existe igualmente uma forte ligação com a perfeição, naturalidade, endeusamento e a dimensão feminina. O belo instala-se nas pessoas, arte, imagem, e em todo e qualquer objecto de desejo ou fascínio.
Falar sobre beleza implica falar sobre um julgamento e sobre um desejo perante algo. Será possível classificar o que é belo sem criar à partida um julgamento sobre esta mesma noção/objecto? Creio que não. E não existe uma forte tendência para associar beleza com outras características extra-estéticas como moral, educação ou ética? Sim, existe. Pois parte-se maioritariamente de uma interpretação pessoal, e esta é vinculada por um código de valores que dificilmente é isento ou imparcial ao gosto próprio e cultural.
De acordo com Oscar Wilde, "a beleza é uma forma da genialidade. Aliás, é superior à genialidade na medida em que não precisa de comentário. Ela é um dos grandes factos do mundo, assim como a luz do Sol, ou a primavera, ou a miragem na água escura daquela concha de prata a que chamamos de Lua. Não pode ser interrogada, é soberana por direito divino." Para Wilde a beleza é desassociada de julgamentos e livre por direito máximo. Poder-se-ia falar de um belo nobre e comportamental contido em gestos de saudação, respeito, fumo, apetite, rendição, busca ou olhar. A beleza é portanto um conceito transdisciplinar e metafísico, que habita numa dimensão exterior ao indivíduo observador mas actua profundamente no seu interior sendo um motor pulsante para a idealização e projecção de sonhos e fantasias.
A revelação da beleza no real dá-se através de um conhecimento interno e cultural subtil. Corresponde a padrões que interligam a relação que o homem estabelece entre o visível e invisível. Esta visão de uma beleza alquímica e separada das capacidade reprodutíveis do homem comum foi durante o Renascimento considerada profana e sagrada - distante do homem - por oposição à beleza contida num morder de lábios, e no desejo sexual e carnal que é contrário à religião da cruz. Acreditava-se num conceito de beleza extra-terreno e inacessível, sendo por isso do domínio dos deuses, principalmente do sexo feminino, por terem a dádiva da Criação.
De onde emerge então a beleza? Trata-se de um valor estético apreendido de forma espontânea ou uma emoção que cresce perante algo com a compreensão dessa mesma coisa/pessoa/objecto? A beleza existe na mulher, no observador que olha a mulher ou na interacção constante entre o observador e a mulher?
Podemos compreender que existe um estado intermédio no qual o observador está incluído na observação e a modifica. Dito de outro modo: eu vejo a mulher e o meu olhar modifica a imagem que eu vejo. Posso dizer que quando olho estou ao mesmo tempo a ser olhado. A beleza preexiste interiormente e é reajustada de acordo com as circunstâncias vivenciadas. Diz o ditado que "a beleza está nos olhos de quem a contempla".
Quando se olha para algo ou alguém e se encontra algum traço de beleza, quer seja física ou sensorial, dá-se uma transformação que é nada mais de que um acto de permissão que essa mesma coisa cresça e ganhe valor interior para com o observador. É a abertura para uma possibilidade de beleza maior que habita não no objecto/indivíduo observado, mas no observador. O fascínio pelo belo existe tal como o funcionamento íntegro de uma paixão amorosa, por isso acontece termos fases em que nos sentimos ligados e extremamente identificados com um filme, pessoa, obra de arte ou mesmo aquela estranha necessidade de vestir determinada cor.
A beleza reside também na nudez das coisas, no seu estado primordial o qual uma vez despido de construções e ficções, uma vez retirada a casca que envolve a semente (do fruto), se deixa vislumbrar a essência.
Esta nudez equivale a um nível instintivo, ingénuo, pouco ou nada racional, rígido, ou muito menos complexo. Desta nudez sobra o que é cru e a pureza aflora no que é nada mais que a Verdade.
A beleza é do campo das emoções e deve ser sentida, não pensada. Consequentemente, cada um sente, vê e tem o seu conceito particular de beleza. A percepção de beleza é individual, tanto quanto somos únicos. E a beleza evolui connosco, podendo ser estudada de acordo com traços estilísticos relativos a uma época que apesar de identificativos, dificilmente se adjectivam.
Imaginemos a beleza como um gelado que se prova e dá acesso a uma satisfação estética de um apetite momentâneo. Esse gelado satisfaz um prazer e depois de absorvido e integrado não passa de um simples gelado. Não é uma experiência global e mística que sirva de exemplo ou gera um sistema de associação directa de gelados a prazer supremo. O mesmo se passa com a beleza, ela é o sopro da inevitabilidade e do acaso. Surge e evapora. Vai e vem. Acende e apaga. É inclassificável e irreproduzível.
A beleza da natureza e a liberdade que esta emana em paisagens rurais e campestres são também alvo de contemplação comum. O facto de se procurar lugares atípicos ao sufoco urbano para passar férias demonstra esta procura por uma visão despreocupada e descomprometida da natureza (o mesmo acontece com a Arte). A natureza mostra uma faceta auto-regeneradora que contém a fórmula da Criação em si mesma. As leis são naturais e incrivelmente funcionam, por isso mesmo a natureza é eternamente bela e nos sentimos atraídos pela floresta, campo, mar ou montanhas.
Já alguma vez, por acaso, viu uma árvore que fosse feia? Este é um padrão humano, não existe na natureza esta concepção bipolarizada pois não existe raciocínio. O julgamento pertence à génese humana e é inverso à natureza. Daqui se explica também a origem da Ciência como estudo dos mistérios da natureza em toda a sua amplitude.
Em suma, procura-se no belo algo que não sofra influências humanas em excesso, pois sabe-se que a beleza e a naturalidade andam de mãos dadas e a nossa espécie vinga em agir de acordo com princípios contrários. Procura-se fugir ao que é considerado comum, típico, vulgar e de fácil acesso, sendo por isso compreensível porque consideramos os nórdicos de olhos azuis e cabelos loiros belos e estes se sentem fascinados pela pele morena e pelos cabelos escuros do sul.
Para Platão, a beleza está associada à harmonia, que é essencialmente um ritmo, do qual provém as proporções das coisas e objectos. Quando nos damos de caras com algo belo a noção de tempo desvanece, as amarras com a complexidade humana perdem-se em instantes que parecem eternos. Quando estamos apaixonados temos essa impressão de viver a eternidade em instantes e é de tal forma grandioso que tudo é passível de acontecer, perdendo-se até a percepção da escala dos comportamentos. Esta apreensão de beleza carrega em si um pacote de sensações secundárias simplesmente fantásticas e não inteligíveis na altura. Caso da impermanência/ausência geográfica, mutabilidade de humor, ou a incalculabilidade das horas. Assim é o belo: uma brisa efémera e desvanescente. Uma harmonia que segue um trilho desconhecido e fascinante.
E é precisamente este factor de imprevisiabilidade do belo que se auto-regenera no humano – tal como acontece na Natureza - e nos leva a reapaixonar e a desejar, e assim surge de novo a beleza a vibrar sem razão aparente no seu estado natural sem artifícios, máscaras, ideias ou planos. O belo está contido nesta liberdade física e espiritual que tem a forma do não-estar e do não-ser, porque já o é precisamente sendo belo e ansiando o vazio das possibilidades.
O contacto com a beleza trata-se de um sopro único e irremediavelmente verdadeiro onde a pré-consciência - quase uma terceira pessoa - habita intemporalmente num estado de "piloto automático" e numa constante dialéctica que tem como desejo último a união com o eterno.
No comment