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1/12/2006 

Iluminada

Uma sala amarelada e atarracada.
O calor humano fazia-se transparecer através do sujo papel de parede onde, ali, jazia a velha: sentada, sozinha, em frente à diabólica caixa emitindo raios de fotoelectricidade; raios de uma luz crua e fria, à base maioritariamente de flashes constantes, como se se tratasse de um consultório médico, uma autêntica lavagem cerebral e epiléptica.
E ali, gelada, pálida, espectral, servia de receptora de tudo e mais alguma coisa - ela era novelas, noticiários, filmes, transmitia de tudo. E a velha, inerte, consumia igualmente um pouco desse todo como se estivesse presa por cabos ao sofá sem almofadas.
Sentia um descanso completo e absoluto ao deixar-se ligar aquela pseudo-realidade. A sua cor, era para ela, um alivio; era a possibilidade de ficar enterrada num poeirento sofá castanho, durante um tempo indefinido e de ter viagens indiscritíveis. Sentia-se acompanhada e quente na presença daquela luz cintilante que pintava o chão, paredes e mesmo a pele nas noites mais escuras e azuladas.
Na verdade, a quem poderia a velha contar tais histórias ou viagens? A quem mais, senão a Ela, a indispensável amiga, a sua grandiosa amiga... Aliás, amiga não, Ela pertencia à família! Uma irmã perdida que não lhe provocava nenhuma dessas desagradáveis consequências e súbitas surpresas sem aviso prévio.
O seu esquecimento e apatia era perfeito, e, se na manhã seguinte era desagradável, quando acordava com dores musculares e náuseas, não o era intrinsecamente. E isso era tudo o que importava.
No ar respirava-se passividade, e na sala havia jarras que apresentavam flores secas e encrostadas. Mortas. Com as pétalas caídas parecendo enjoadas com a temperatura. Lá fora, no entanto, a luz tentava entrar na esperança de trazer consigo alguma vivacidade; como se tentasse ressuscitar milagrosamente um defunto. Mas apenas penetrava pelas finas frinchas dos estores já há muito encravados.

A velha era uma mulher muito gorda, daquelas com um olhar espantado, incrédulo, e constantemente de boca aberta. Os cabelos eram de um castanho caramelizado que se encaracolava entre si numa esponja de humidade; as feições fortemente rasgadas na pele assada juntamente com umas bochechas caídas, uns olhos injectados de sangue e uns seios enormes que nem sacos de areia despejados à beira da auto-estrada.
Em suma, a abandonada velha entregava-se de corpo e alma ao ambiente clinico e sufocante daquele espaço. Era a sua pequena sala, rústica, o seu canto de (i)reflexão. Estava em sintonia. Em coma profunda e pacifica.
Porém, ao contrário da velha, a caixa transmitia respeito e serenidade, inspirava uma atmosfera similar àquele silêncio arrepiante de estar a assistir a uma missa, uma missa funebre. Um missa que se arrasta através do tempo e do espaço com um longo sinal agudo e prefurador. Um sinal progressivo que invade cada canto do ambiente onde se liga. Profura cada cavidade e instala-se por debaixo dos braços, entre os dedos e dentro da traqueia azeda de vazio.
Ali, no seu canto, ela epileticamente se deixava observar, passava o testemunho, deixava-se ser vista e domada acatando todas as ordens da ilustre anfitriã - pobre velha! Nunca tinha percebido como Ela era grande!
Todo o seu poder... Ela estava em todo o lado, em todas as casas, nos olhos de todos, no coração da velha, na sua cabeça, continha a força de arrastar multidões, de criar, incentivar, mostrar, punir... Era uma janela lá para fora, mesmo apesar de ser vista cegamente, Ela era já um Deus do futuro, um Deus sem local de oração próprio mas ao qual se tem de prestar obrigatoriamente vassalagem. Bastavam algumas horas de observação e o bichinho começava a desenvolver-se, a crescer, a propagar a mensagem e a conquistar outras velhas, outras salas, outras mentes. Uma minhoca varageira que se desenvolvia internamente e se representava através de epidemias de obesidade, esquecimento e inércia psicológica.
Neste caso, a velha continha todos os sintomas desta doença: imóvel, com um olhar penetrante e ao mesmo tempo obcecado, fazia todas as suas tarefas domésticas sentada no sofá, em frente a Ela. A Grande! Quem a visse pensaria que talvez estivesse sob algum bruxedo, mas não, ela era assim mesmo... Uma devota.
Comia, falava, cantava, sim ela cantava! Cantava todas as músicas dos programas, e chilreava como podia: Lálá lálálálá lá lá lálálálá, chegava mesmo a encenar os apresentadores predilectos, copiar os seus tiques, maneira de falar, olhar, vestir. Todos os programas da vida real chegavam a ser mais reais para ela que a própria realidade, vivida fora de portas, mas onde só raramente ia. Enfim, Ela era indiscutivelmente um exemplo, e mantinha-a alegre e fanática, enquanto se tivessem uma à outra. Eram interdependentes e... Felizes?
A velha sentia-se uma lider espiritual, uma previligiada por a Ter. Por ter acesso a Ela e a compreender! Era uma iluminada!

Marcava todos os seus dias e estavam todos devidamente preenchidos. Às 6h. da manhã começava os anúncios de vendas que certo dia, depois de 12 horas seguidas, a velha começou a decorar as falas, a saber as receitas, e truques, de trás para a frente.
Às 7h. eram as missas em directo e os programas em que todos lhe desejavam um bom dia, com um padronizado sorriso de orelha a orelha ao qual a velha ripostava hipocritamente. Depois, seguidamente, quase às 12:30, era a vez dos programas de culinária que a senhora via atentamente, tomando nota das receitas com a sua caligrafia ilegível de analfabeta, enquanto olhava furtivamente a habitual cozinha desarrumada onde as baratas criavam galerias labirinticas.
A velha buscava no pre-consciente sinais de fome, lembrando-se que apenas possui uma lata de salsichas no frigorifico e alguns restos de verduras podres.
Na noite anterior dera o seu filme preferido, o qual vira 6 vezes por isso não tinha saído para fazer compras. Quando foi a última vez que saiu?
Pelas 13h. começava o noticiário e ela fazia um autêntico teatro... Chorava com as crianças feridas por causa da guerra e com todos os pobrezinhos mostrados na grandiosa Deusa - ria-se com as piadas do apresentador, o qual mantém toda a boa disposição mesmo após a secção de imagens do "morte da semana" e ficava serena com todas as quedas na bolsa, o desemprego, as revoltas sociais, as greves, etc. Era um festim de acontecimentos que lhe enchiam a sala e a cabeça. Tudo fazia tanto sentido e tudo era real, pois era Ela que lhe mostrava. A detentora da Verdade.
O seu horário continuava. Aproximadamente às 14h. ligava-se inteiramente às telenovelas que eram o seu maior entretenimento, por 3 horas seguidas, quase sem respirar e sem intervalos para publicidade Ela segredava-lhe todas as coscuvilhices. A velha mantinha-se imóvel, contorcendo as tripas e prendendo as vísceras ao sofá de pés arredondados de madeira.
Por vezes adormecia, mas continuava sintonizada, sonhando com vestidos cor-de-rosa choque, iguais aos da heroína da novela, com as suas fitas, crises conjugais e longos cabelos lustrosos.
Depois, às 17h. e pouco, daria certamente um filme repetido inúmeras vezes, fosse em que canal fosse, mas naquele estado hipnótico isso não importava, era ver por ver, nada mais. E ria-se das mesmas cenas, embirrava com as mesmas personagens que já conhecia de outros filmes, representava tão bem ou melhor do que todos os famosos. Orgulhava-se dos seus dotes!

Nos intervalos levantava-se e bebia água bolorenta, comia restos que apanhava dos cantos, ou ia à WC descarregar. Mas muito rápido, que está quase a recomeçar a maratona, e não vá ela perder o anuncio novo de desinfectante para plantas.
Quando o relógio batia as 19h. e 20 daria outro programa da vida real em directo, e ela só pensava se era desta vez que a tipa ruiva se deixava seduzir pelo morenaço, e... quem sabe?... Talvez o serão fosse mais apelativo que o costume, tudo dependia das acções de pessoas "reais" numa "realidade" obtusa e perfeitamente construida.
Minutos após o fim, começaria o jornal da noite, e a mulher recomeçaria a representação: choros, gritos de aflição, gargalhadas, uma infinidade de sons. Uma reportagem especial de uma guerra num lugar longínquo, fome em países não europeus, distúrbios políticos sabe-se lá onde... Fosse o que fosse, tudo lhe provocava reacção sabendo ela, ou não, do que se tratava.
Quando acabava o jornal, pelas 21:15, depois de muitas encenações, mais uma sessão contínua de talk-shows sobre temas altamente importantes socialmente. Ela segue todos os movimentos, todas as falas, expressões. A velha faz o mesmo, não lhe escapava nada. Afinal, ainda não era desta que a ruiva e o morenaço... enfim, talvez noutro dia, ou depois... Também não há pressa.
Ao cair da noite, pouco após as 23h., mais um filme: sexo, violência, explosões, tudo o que o povo gosta. E a velha não fica atrás, vai largando uns gemidos Aiiiiiiiii, Uiiiiiii, que horror, mas vai seguindo até ao fim, tal como no telejornal... Afinal para ela é quase o mesmo. E tudo graças a Ela, Como era bondosa! Como lhe proporcionava agradáveis serões e estava ali de antenas abertas pronta a ouvir nos bons e nos maus momentos. Sempre uma companhia. Sempre do lado Dela. Sempre fiel e atenciosamente ininterrupta.
Ela esta estava sempre ali, nunca ripostava, era isso que apaziguava a alma da pobre velha, era a sua maior riqueza. De facto, era a sua única certeza em todo o mundo - Ela estava sempre ali para si. E não a reprimia ou apontava o dedo. Era magnifica!
Aquela sensação de chegar a casa, e saber que Ela a esperava, para conversarem, era indescritível; A velha delirava ao apalpar o comando nas mãos fazendo uma concha, e ouvir aquele som sublime: BZzzzzzzsssh, ao ligar. De certo, conhecia muito melhor aquele comando universal do que as suas próprias mãos que o agarravam, costumava acariciá-lo enquanto olhava para Ela, não com muita intensidade, pois Ela estava a ver. Mas, aconchegava-o contra o peito como se fosse um filho, e é claro que quando se usava dele não precisava de olhar para os botões gastos pois fazia inveja a qualquer novato na prática do frenético zapping.
Noites, dias, manhãs, madrugadas, Ela estava sempre presente, com a mesma aparência e continuamente a crescer, a aumentar o seu sistema de valores, a sua importância. A idosa, essa coitada, já mal a conseguia ver, e o conhecimento que tinha do mundo exterior era apenas aquele difundido por Ela.
Porém, as suas cores davam-lhe alento e enquanto uma caía em decadência a outra ia iluminando as salas de todas as famílias do mundo. Com um simples click as ideias alternavam radicalmente. Com apenas 5 minutos diários convencia-se, ou melhor convertiam-se, legiões de doentes mentais.

Lentamente a senhora pressionava nos botões, gesticulando com dificuldade devido à sua idade, o simples pressionar de um botão tornou-se um acto de esforço, vagaroso, um acto que implicava perícia, e logo para ela, a melhor conhecedora televisiva deste planeta.
O seu afecto por Ela era tão grande que se tornava um acto de sacrilégio ter de se levantar, enfrentá-la, e virar-lhe as costas estando Ela sempre em comunicação, pronta a ajudar - não estava certo!
Para a velha, a caixa era um ente querido, era a Sua adorada, a protagonista principal na sua vida. No entanto, a velha não passava de um décor, de um segundo plano, sabia que Ela (con)tinha mais importância.
A solução era ficar ali, especada, não se levantar do sofá, e apodrecer juntamente com a humidade das paredes, e com o som de fundo agudo que a violava subtilmente.
Lá fora nada a esperava, e a nostalgia dos plácidos domingos de manhã a ver a vida selvagem fortalecia a ideia de querer passar, os seus últimos dias, perto Dela. Era a sua família, ainda se recordava quando acidentalmente faltava a electricidade o sofrimento que isso lhe causava: ficava estática, imóvel, aparvalhada, em poucos segundos, as saudades transformavam-se em martírio, dor, agonia. Chegava mesmo a chorar no escuro como fazem as crianças quando lhe tiram um brinquedo. Chegava mesmo a questionar a importância Dela! Como se o mundo caísse e nada mais fizesse sentido. Uma depressão inacreditável e desesperante.

O mais extraordinário contudo, era a forma como Ela lhe dava tudo o que queria ver, sabia exactamente aquilo que interessava e como tomar efeito sobre a vulnerável velha. Mal sabia ela! Coitada! Não entendia. Pensava que era o Seu grande poder e limitava-se a acompanhar a programação, nunca traía os horários estipulados e na altura em que precisava de ver uma telenovela lá estava uma no canal certo à hora combinada, pronta para ela, quase programada geneticamente exclusivamente ao seu gosto e na sua sala, no seu habitat natural.
A velha dormia, e Ela crescia, ia apoderando-se de todos os cantos da casa, não só da sua casa mas de todas as outras casas lá fora, da vizinhança, de todo o bairro, de todo o lado. Ela tinha poder. Ela via-a pela noite fora, pelas janelas das ruas e dos prédios, e toda a noite Ela a viu também.

No fim da emissão, acabava por ser uma daquelas vulgares trocas de impressão, as tão chamadas conversas em silêncio, totalmente não verbais, sem qualquer componente humana e neste caso carregada de um vazio lento, cultivando uma comunicação ilógica por natureza. E o sinal agudo sempre presente e sibilante. O ambiente tornava-se frequentemente mórbido, a falta de consciência era tal, que os papeis trocavam-se por completo, e não obstendo a já absurda realidade, a velha ainda se ria de si mesma - como se alguém ouvisse, como se tivesse importância sorrir para Ela!
Uma coisa era certa, o mundo podia estar prester a acabar mas não era por isso que as audiências iam baixar ou a velha pousar o comando e deixar de estar Iluminada!